terça-feira, 21 de outubro de 2008

A OPRESSÃO DOS ESCRAVOS SINALIZA A BASE ALIMENTAR DO BRASILEIRO





Desembarcados, exaustos, sangrando pelo “mal de Luanda”, o escorbuto infalível, ulcerados, arquejando ao peso da “barriga-d`água”, os escravos quase sempre, iam recuperar as forças e recobrar a saúde acampados debaixo dos cajuais multimilionários de ácido ascórbico“ Costume velho. Já os negreiros e os senhores de engenho praticavam o internamento dos negros debilitados pela longa travessia oceânica ou dos atacados de ascites, cobertos de feridas, esgotados pela árdua tarefa dos eitos, nos cajuais praieiros, de onde dois ou três meses depois regressavam curados. (CASCUDO. História da alimentação no Brasil, p. 223.).





Escrever sobre a dieta dos escravos africanos no Brasil e a influência que a mesma desempenhou no padrão alimentar do brasileiro, requer uma abordagem que vai além da simples descrição dos alimentos e penetre na história de opressão sofrida por esse povo. Entendemos que o ato de alimentar-se é resultante de um processo histórico em que as relações de sociabilidade encontram-se no fluxo das questões políticas, econômicas, culturais, religiosas e sociais. O que comer? Como comer? E para que comer? É resultado de um fato histórico construído pela humanidade, pois só assim poderemos entender a dimensão da gastronomia.

Optamos por uma análise que ultrapasse a mera descrição quantitativa dos alimentos que fazem parte da ração dos escravos africanos, para tanto, realizamos um estudo com a epistemologia do materialismo histórico como capaz de compreender a subjetividade/objetiva do objeto – gastronomia - em sua totalidade. Nesse sentido, entendemos que a dieta alimentar do mundo escravocrata é produto de uma razão histórica que se explica no interior do desenvolvimento das relações de produção.

A história de um povo pode ser retratada pela gastronomia que é produto das relações sociais guiadas pela luta constante pela sua subsistência, pois a garantia da sobrevivência se explicita de como os homens se organizam para garantir a espécie. Esse processo, muito bem trabalhado por Darcy Ribeiro demonstra que a formação de uma etnia brasileira só foi possível quando envolveu e acolheu as diferentes etnias que aqui se encontraram.

O Brasil tem sido, ao longo dos séculos, um terrível moinho de gastar gentes, ainda que, também, um prodigioso criatório. Nele se gastaram milhões de índios, milhões de africanos e milhões de europeus. Nascemos de seu desfazimento, refazimento e multiplicação pela mestiçagem. Foi desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos.

Somos, em conseqüência, um povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor.

Assim, a gastronomia é resultado de um processo de luta de classes na qual o capital impõe aos cidadãos quais os alimentos que fazem parte de sua dieta diária em termos qualitativos e quantitativos. As condições de vida do escravo tanto na zona rural e urbana vão ser adversas, porém estão determinadas pela dinâmica produtiva a qual estão inseridos.

Não existe o “bom” tratamento ou o “mal” tratamento dado ao escravo pelo dono do latifúndio terratenente, mas sim, a lógica do trabalho escravo que se baseia na maximização da sua força de trabalho em beneficio à acumulação de capital. Pois o escravo é uma mercadoria que tem valor de uso e valor de troca, portanto um instrumento que vai ser “cuidada” segundo a capacidade financeira do coronel e do tipo da atividade produtiva por este desenvolvida.

Com esta visão exata do escravo como mercadoria Jean Baptiste Debret descreve-o reforçando sua condição no interior do mercado capitalista que se forma em torno dessa mão de obra:

Tudo assenta pois, neste país, no escravo negro; na roça, ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade, o comerciante o faz carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor. Mas sempre mediocremente alimentado e maltratado, contrai às vezes os vícios dos nossos domésticos, expondo-se a castigos públicos, revoltantes para um europeu, e que são, muitas vezes, seguidos da venda do culpado aos habitantes do interior, onde o infeliz vai morrer a serviço do mineiro.

Reforçando os argumentos de que a condição de escravo era comparável ao tratamento dado aos animais, pois eram vistos pela classe dominante e literatura da época como bestas de carga para a acumulação de capital. As referências encontradas reforçam essa idéia, além do que o escravo é tido como um investimento para o latifundiário, portanto, uma mercadoria que deve ser mantida viva, mesmo que em condições precárias para o trabalho.

Em comentários pontuais temos as questões acima ponderadas, pelas observações de Eduardo Frieiro quando escreve que:

A alimentação consistia no estritamente necessário para os “fôlegos vivos” (como eram chamados) não se enfraquecessem demais ou não morressem de desnutrição, com grave prejuízo dos trabalhos que deles se exigia. Interessava ao proprietário conservá-los, como às bestas de carga, em boas condições de uso.

Alimentação, quase sempre, não passava de feijão bichado e angu mal cozido. Em outros casos, a pobre besta escravizada tinha de se contentar com laranja, banana e farinha de mandioca.

O mercador e o latifundiário entendiam que a mão de obra escrava deveria ser alimentada o suficiente para não perecer prematuramente, pois é uma força de trabalho que exige um investimento. Desde o embarque no continente africano até o desembarque nas costas brasileiras e o aguardo de quarentena que não durava mais que oito dias dependendo das enfermidades e das necessidades dos coronéis. O escravo era necessário para manter o Estado monárquico de uma elite que começava a ressentir a deficiência dessa mão-de-obra para que o sistema econômico desse um salto para o trabalho assalariado.

Os mercadores de escravo sabiam das péssimas condições dadas ao negro quando transportado nos navios. A quantidade de mortes era alta chegando a quase 50% do total da carga, por esse motivo os porões dos navios vinham completamente repletos, como forma de compensar as futuras perdas, dificultando as condições de higiene, saúde, espaço para dormir e de ventilação, como diz o botânico Georg Wilhelm Freyreiss em 1815.

Para aumentar o lucro procura cada navio carregar a maior quantidade que caiba a bordo, de modo de um navio de 300 tons (150 toneladas) raras vezes leva menos de 700-800 destes infelizes. Por um motivo mais infame ainda o capitão providencia sempre no Brasil para ter mantimentos para a volta, por serem ali mais baratos; por isso estão esses mantimentos mais ou menos estragados, o que custa a vida a muitos escravos. Arrumados todos num espaço insuficiente, estão eles quase sempre empilhados por baixo do tombadilho, cujas estreitas aberturas não lhes facultam a entrada do ar nem a saída das emanações de tantas pessoas, que numa zona quente se tornam verdadeiramente pestíferas e mortais. Os alimentos estragados contribuem por sua vez para que em poucos dias de viagem já se produzam mortes. Mas terrível ainda se torna quando os ventos contrários atrasam a viagem e a falta de água começa.

Ao desembarcar eram de lavados, vestiam roupas novas e faziam uma refeição à base de frutas, feijão, farinha e carne seca ao serem liberados pela inspeção de saúde e distribuídos em vários sítios da zona central do Rio de Janeiro e na praia do Valongo em seus mercados de venda de seres humanos. Vão ser propriedade de engenhos de açúcar, escravos em fazendas de criação de gado, trabalhar em minas de ouro e diamantes, colhedores de café, serviçais urbanos, estas atividades vão interferir no padrão alimentar desses escravos. Portanto há uma despesa que é agregada ao preço do escravo que mesmo assim se constitui em uma mercadoria barata como comenta do historiador Manolo Florentino em seu estudo sobre a escravidão:

[...] os escravos eram mercadorias socialmente baratas, conclusão ainda mais fortalecida pelo fato de não estar deflacionado a faixa de 1 a 500 mil réis. Ora, se este padrão conseguiu manter-se mesmo levando em consideração os custos do apresamento, transporte e a remuneração dos traficantes, então é óbvio que residia na África o segredo da extensão social da propriedade escrava no Rio de Janeiro.

Poder-se-ia argumentar que até mesmo os mais pobres inventariados fluminenses possuíam escravos, menos por causa de seu baixo preço do que em função da força simbólica do “ser senhor de escravos” na mentalidade coeva.

O comércio de escravos continua extremamente necessário para atender às necessidades de mão de obra para o trabalho nos latifúndios, bem como, para uma elite usuária de serviçais que trabalham na casa grande e se deixam incorporar e mesclar certo gosto da culinária africana à dieta do brasileiro. Esse processo de sincretismo cultural molda à formação de uma rica cultura em que as expressões étnicas relaboram constantemente o cotidiano do homem Brasilis, timbrando uma gastronomia extremamente diversificada, aromática, protéica e saborosa.

Sabores da culinária brasileira que nos levam para o imaginário de etnias diferentes e opostas em períodos históricos passados, de triunfos e opressão foram se constituindo no perfil do Brasileiro. Formando uma cultura solidificada por vários grupos sociais expressando a formação de uma gastronomia é que produto da luta de classes de um povo.

O inicio do sofrimento começa quando são levados para os entrepostos de embarque, ali são alimentados, passam óleo de palmeira para lubrificar a pele e aguardam trabalhando até a partida, sem saber ao certo qual será seu destino e como suportará a longa viagem de 35 a 40 dias até o Brasil. Os homens são transportados nos porões do navio, acorrentados e ocupando o espaço do tamanho do seu corpo. As mulheres na segunda meia-ponte, as grávidas ocupam a cabine de popa e as crianças o convés.

O sofrimento do escravo africano vai refletir típicos hábitos e carências alimentares, desde sua chegada ao Brasil e sua venda como mercadoria sinaliza a história de uma rica gastronomia que se constituí no cotidiano do sofrimento de seu trabalho escravo. O embarque feito de forma “espontânea” ou enganosa por meio da bebida não deixa de ser um momento dramático dentro de sua dimensão psíquica e segundo descrições dos transportes nos navios da época:

Às pipas de água juntavam-se a lenha utilizada para cozinhar a panela de arroz, legumes secos e mandioca, base da alimentação dos cativos. Uma lei portuguesa de 1684 mandava que lhes fossem servidas três refeições diárias, acompanhadas de um total de uma “canada” de água (2,662 litros).

Os africanos trouxerem hábitos alimentares que foram em parte reprimidos ou estimulados isto é, incorporado pela sociedade da época. O exemplo da caça dependendo da localidade geográfica era uma pratica gastronômica estimulada e permitida, como reprimida era e a matança de cachorros para alimentação.

A pimenta de várias regiões da África, as papas, pirões de féculas e o milho (cuscuz) eram pratos preferidos os inhames assados, cozidos e misturados ao peixe ou na caça. Apreciavam o feijão e vinhos de milho, mel de palmeira, como afirma Câmara Cascudo:

O inhame, o óleo-de-dendê, a pimenta avassalante, as sementes de frutas, secas ou aromatizantes, as folhas tenras, e sobretudo o cimento das papas, os mingaus negros o alimento líquido e semilíquido, resistem sem esforço á maré montante do universalismo culinário ou a presença da cozinha obstinada dos antigos colonizadores europeus.

No Brasil a gastronomia assimilou diversos tipos de comidas africanas que era comercializada pelas escravas de pequenos capitalistas ou negras livres com seus tabuleiros ou tachos em que vendiam seus famosos cuscus, angus, acarajés e frutas. Essa economia se sustentava no trabalho escravo e livre que ganha espaço dentro da sociedade da época.

A alimentação da população escrava era característica do tipo de trabalho que o mesmo desenvolvia e da capacidade financeira de seu dono, entretanto mantinha um padrão comum no Brasil inteiro independente das condições locais da atividade produtiva. O maltrato comum com o escravo era generalizado, independente da literatura romanceada que servia para resguardar os interesses da classe dominante em uma passagem do livro de Eduardo Frieiro relata:

Os escravos, esses, vivendo em condições infra-humanas, andrajosos ou seminus, eram os que mais sofriam com a pobreza da alimentação. Na pinga e no tabaco buscavam compensar de algum modo as insatisfações do estômago e mitigar as agruras do rude trabalho das lavras, onde permaneciam de sol a sol, com o corpo metido até a cintura nos ribeiros, manejando a bateia.

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